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Artigo - 31 de julho de 2020

Limite financeiro das alterações qualitativas do contrato administrativo

De acordo com a Lei 8.666/93 e TCU, o limite de aumento de até 25% do valor inicial do contrato é aplicável a qualquer tipo de alteração contratual?

 

Os contratos administrativos – modalidade de contrato celebrado pela Administração Pública – submetem-se às regras específicas de direito público que atribuem ao ente contratante certas prerrogativas contratuais mais vantajosas em relação a outra parte. É dizer: o ordenamento jurídico garante nos contratos administrativos a quase absoluta ingerência do Poder Público em detrimento do contratado. Nesse tipo de negócio jurídico, as partes definitivamente não possuem poderes negociais equivalentes.

Como todo contrato, o administrativo também está submetido às mudanças fáticas e jurídicas que podem ocorrer após a sua celebração. Circunstâncias diversas, previsíveis ou não (há algo mais inesperado que uma pandemia mundial de saúde pública?), podem afetar a execução do contrato e, por consequência, impor a necessidade de alteração de seus termos.

Não é novidade para os integrantes da Administração Pública e aqueles que com ela contratam que, para se alterar o contrato administrativo, é necessário observar as hipóteses, o procedimento e, sobretudo, os limites previstos na lei.

Lei n. 8.666/93 prevê no art. 65, I, duas possibilidades de alterações contratuais promovidas unilateralmente pela Administração, independente da concordância do contratado: a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos; e b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto.

O contratado é obrigado a aceitar a alteração contratual que repercute no valor acordado, em razão de acréscimo ou diminuição quantitativa do objeto contratado, seja diminuindo ou aumentando a quantidade de obras, serviços ou compras, em até 25% do valor inicial atualizado do contrato.

A Lei n. 8.666/93 é enfática: nenhum acréscimo ou supressão poderá exceder tal limite de 25%, salvo as supressões (jamais acréscimos) resultantes de acordo entre as contratantes, nos termos do art. 65, §2º.

Tal limitação de acréscimo de até 25% do valor inicialmente contratado, no entanto, aplica-se exclusivamente às alterações quantitativas do objeto do contrato.[1] Às denominadas alterações qualitativas do contrato administrativo, que são aquelas necessárias para melhor adequação técnica dos objetivos da contratação (art. 65, I, “a”), nem mesmo a lei poderia impor uma prévia limitação, sob pena de frustrar, nos casos concretos, o próprio interesse público buscado no contrato celebrado.

A modificações qualitativas do contrato administrativo não se submetem ao limite financeiro de aumento de até 25% do valor inicial do contrato, previsto no art. 65, §2º, da Lei n. 8.666/93, porque é insuficiente a análise da repercussão da alteração contratual qualitativa exclusivamente sob o enfoque financeiro.

As circunstâncias específicas de cada situação concreta são justamente as responsáveis por afastar, em situações excepcionais, a limitação financeira dos 25% previstos na lei.

Não há, nem na Lei n. 8.666/93 nem nos precedentes do Tribunal de Contas da União sobre a matéria[2], qualquer determinação numérica/percentual objetiva aplicável às alterações qualitativas do contrato administrativo.

E nem poderia haver: a alteração qualitativa do contrato justifica-se diante de adequações técnicas supervenientes à assinatura do acordo entre as partes, em razão “de circunstâncias desconhecidas acerca da execução da prestação ou a constatação de que a solução técnica anteriormente adotada não era a mais acertada”[3]. Não poderia haver limitação percentual financeira nessas hipóteses, sob pena de inviabilizar tais modificações contratuais.

Evidentemente, não está ao alvedrio do gestor e da Administração majorar financeiramente o contrato, ilimitadamente, sob a justificativa de alterá-lo qualitativamente. Por essa razão que o Acórdão TCU 215/2009 expressamente consignou que as alterações qualitativas e excepcionais que ultrapassem os limites do art. 65, §§ 1º e 2º da Lei n. 8.666/93 devem obediência aos princípios da finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade.

A verificação do atendimento aos aludidos princípios jurídicos no caso concreto não pode cingir-se exclusivamente ao exame isolado do percentual de aumento do valor do contrato administrativo originário.

teste de razoabilidade e proporcionalidade perpassa justamente pela análise dos pressupostos pormenorizadamente elencados no Acórdão TCU 215/2009, reproduzidos a seguir:

I – não acarretar para a Administração encargos contratuais superiores aos oriundos de uma eventual rescisão contratual por razões de interesse público, acrescidos aos custos da elaboração de um novo procedimento licitatório;

II – não possibilitar a inexecução contratual, à vista do nível de capacidade técnica e econômico-financeira do contratado;

III – decorrer de fatos supervenientes que impliquem em dificuldades não previstas ou imprevisíveis por ocasião da contratação inicial;

IV – não ocasionar a transfiguração do objeto originalmente contratado em outro de natureza e propósito diversos;

V – ser necessárias à completa execução do objeto original do contrato, à otimização do cronograma de execução e à antecipação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes;

VI – demonstrar-se – na motivação do ato que autorizar o aditamento contratual que extrapole os limites legais mencionados na alínea “a”, supra – que as consequências da outra alternativa (a rescisão contratual, seguida de nova licitação e contratação) importam sacrifício insuportável ao interesse público primário (interesse coletivo) a ser atendido pela obra ou serviço, ou seja gravíssimas a esse interesse; inclusive quanto à sua urgência e emergência;

O pressuposto diretamente ligado ao aspecto financeiro do contrato administrativo é o item I. Ele serve de barema para que o gestor identifique, diante da situação concreta de majoração financeira imposta pela alteração contratual, se é vantajoso ou não para a Administração promover a modificação qualitativa.

A alteração qualitativa do contrato administrativo, independentemente do quanto majore o valor originário do contrato, somente pode ser caracterizada como desarrazoada e desproporcional se, e apenas se, economicamente desvantajosa para a Administração Pública. Isto é, se menos custoso para a Administração promover a rescisão contratual, indenizar o contratado pelos custos já incorridos e promover novo procedimento licitatório.

Independentemente da repercussão financeira da alteração contratual qualitativa, isto é, se ela aumenta 20%, 50%, 100% ou 200% o valor originariamente contratado, a compatibilidade do modificação qualitativa do contrato com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade deve ser aferida sob o prisma da vantajosidade e atingimento do interesse público na situação concretamente analisada.

O TCU não estabelece previamente um teto percentual limitador para aferir a legitimidade da alteração contratual qualitativa. O cumprimento do pressuposto do item I do Acórdão 215/2009 é analisado casuisticamente, diante das peculiaridades da situação concreta:

As premissas fixadas na Decisão 215/1999 – Plenário restringem a situações excepcionalíssimas a extrapolação do limite estabelecido nos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei nº 8.666/93. […] Sob o ponto de vista financeiro, houve benefícios à contratante. Pelas informações apresentadas pode-se presumir que a alteração contratual não acarretou encargos superiores aos oriundos de uma eventual rescisão contratual por razões de interesse público, acrescidos aos custos da elaboração de novo procedimento licitatório; propiciou a execução contratual e decorreu de fatos supervenientes não previsíveis na contratação original. Esse conjunto de informações autoriza o acolhimento das razões de justificativa.” (Acórdão 160/2009 – TCU – Plenário, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, TC 008.210/2004-7, Sessão Plenária: 11/02/2009).

“Condição I – [não acarretar para a Administração encargos contratuais superiores aos oriundos de uma eventual rescisão contratual por razões de interesse público, acrescidos aos custos da elaboração de um novo procedimento licitatório]: conforme “Ata de Reunião de Recebimento e Abertura de Propostas” (fl. 98 do Anexo 1), os preços apresentados pelas demais licitantes foram R$218.146,00, R$ 430.540,00 e R$ 1.192.441,59, ou seja, 92%, 278% e 947%, respectivamente, maiores que o valor da Tecnosolo (os supracitados R$ 113.840,00). Assim, a realização de novo procedimento licitatório não apenas implicaria despesas com o certame, como, quase certamente, não levaria a uma oferta tão baixa como a que a Tecnosolo apresentou na primeira licitação. Note-se que o preço para o acréscimo em tela foi de R$ 2,97/m², valor muito menor do que aqueles apresentados, na licitação, pelas demais empresas (R$ 7,27/m², R$ 14,34/m² e 39,72/m²). Portanto, o aditamento resultou em economia para a estatal.” (Acórdão 914/2009 – TCU – Plenário, Rel. Min. Aroldo Cedraz, TC 010.476/2006-3, Sessão Plenária: 06/05/2009).

55. Outro aspecto importante a destacar é que, embora a Decisão 215/1999-TCU-Plenário faça menção expressa, no tópico em análise, a ‘encargos contratuais’, é preciso que a análise dos condicionantes da escolha feita pela Administração seja feita sob uma ótica mais ampliada, consentânea com os princípios da Administração Pública, inclusive aqueles explicitados na própria Decisão. 56. É necessário, portanto, comparar não somente os custos diretos decorrentes da execução do procedimento licitatório, somado ao preço do novo contrato, com os custos diretos incorporados ao contrato por meio de aditivo, mas uma série de outros encargos, inclusive aqueles cuja quantificação monetária não é factível, mas que possuem grande relevância, a exemplo da qualidade do serviço prestado pelo Órgão à sociedade. […] 69. Tal avaliação, associada às premissas referidas nos dois parágrafos iniciais desta análise (parágrafos 47 e 48), de que a demonstração objetiva, precisa e cabal da vantajosidade do aditivo em relação à nova licitação não é possível, face às incertezas que circundam o procedimento licitatório, permitem concluir que o requisito previsto no item b, I da Decisão 215/1999-TCU-Plenário foi preenchido no presente caso.” (Acórdão 1826/2016 – TCU – Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti, TC‑014.137/2015-1, Sessão Plenária: 13/07/2016).

Neste cenário, diante da hipótese concreta de um contrato administrativo que reclame uma alteração qualitativa, não pode a Administração Pública, os órgãos de controle e o Judiciário examinarem exclusivamente o acréscimo financeiro que a alteração promove no valor originário contratado para considerá-la (in)compatível com a ordenamento jurídico.

É imprescindível a análise da situação específica e o contexto no qual a alteração contratual qualitativa é exigida, a fim de verdadeiramente apurar o atendimento aos princípios da finalidade, proporcionalidade, razoabilidade e interesse público no caso concreto.

 

[1] “Depois, o § 2.º refere-se à vedação a acréscimo ou supressão. Examinando o elenco do inc. I, identifica-se claramente que a hipótese se configura no caso da alínea b. Esse é o dispositivo que trata de “acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto”. A redação do § 2.º tem clara e inquestionável relação com o disposto na alínea b do inc. I.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4 ed. em e-book baseada na ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016)

[2] A decisão paradigma do TCU sobre o tema é o Acórdão 215/2009 – Plenário, que serve de base objetiva para o exame casuístico da legitimidade das alterações contratuais qualitativas.

[3]  JUSTEN FILHO, Marçal. Ob. Cit.

Monya Pinheiro

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