O Provimento 65/2017 do CNJ e a restrição ilegítima à usucapião extrajudicial
A Constituição Federal de 1988 elenca entre os direitos e garantias fundamentais o princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII), estipulando-se também que tal princípio deve orientar toda a ordem econômica brasileira (art. 170, III).
O sistema normativo nacional contempla diversos instrumentos de política urbana e rural, como, por exemplo, a usucapião.
De acordo com o Código Civil, a usucapião é forma de aquisição originária tanto da propriedade imóvel (art. 1.238 e seguintes) como também da propriedade móvel (art. 1.260 e seguintes).
Com a usucapião, objetiva-se a conformação jurídica de situações fáticas que se consolidaram ao longo do tempo, ensejando estabilidade das relações e prestigiando-se os princípios da função social da propriedade e da segurança jurídica.
Trata-se de relevantíssimo instrumento de regularização fundiária rural e urbana, impondo-se, portanto, a inescapável observância desses princípios durante o procedimento hermenêutico do instituto da usucapião.
O Código Civil estabelece as hipóteses de usucapião, preceituando que: “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis” (art. 1.238, CC – usucapião extraordinária), reduzindo-se esse prazo a “dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo” (Parágrafo único do art. 1.238, CC).
Estabelece também o Código Civil que adquire a propriedade do imóvel “aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos” (art. 1.242, CC – usucapião ordinária).
Além disso, são previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro a usucapião especial de imóvel urbano (art. 183, CF; art. 9º e seguintes do Estatuto da Cidade; art. 1.240, CC), a usucapião especial de imóvel rural (art. 191, CF; art. 1.239, CC), a usucapião especial de imóvel urbano por abandono de lar (art. 1.240-A, CC) e a usucapião especial urbana coletiva (art. 10 do Estatuto da Cidade).
Assim, para a aquisição originária da propriedade basta o preenchimento dos requisitos exaustivamente elencados pela lei, impondo-se, ademais, a confirmação de ausência de qualquer das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição aquisitiva (art. 1.244, CC).
Sob essa perspectiva constitucional e legal, pode-se asseverar, de pronto, a absoluta invalidade da regra veiculada pelo §2º do art. 13 do Provimento CNJ n. 65, de 14/12/2017, cuja redação é abaixo transcrita:
“Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei”.
Ora, o Conselho Nacional de Justiça, a pretexto de estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial nos serviços notariais e de registros de imóveis, não pode estabelecer requisito não previsto por lei formal para o reconhecimento da usucapião.
A despeito de sua importante atuação (art. 103-B, CF), não se insere na esfera de competência do CNJ a função legislativa, especialmente sobre direito civil e registros públicos, matérias de competência privativa da União, conforme os incisos I e XXV do art. 22 da Constituição Federal.
Não havendo, destarte, nenhuma regra legal (lei formal editada pela União) que preveja a ausência de “óbice à correta escrituração das transações” como requisito de qualquer das formas de usucapião, revela-se a ilegitimidade da exigência estipulada pelo §2º do art. 13 do Provimento CNJ n. 65, de 14/12/2017.
Rigorosamente, ainda que o possuidor tenha justo título apto à escrituração e ao registro da transação imobiliária, pode ele optar pelo reconhecimento da aquisição originária da propriedade do imóvel, desde que estejam presentes os requisitos de qualquer das formas de usucapião disciplinadas pela legislação ordinária.
Reitere-se que nem o Código Civil nem nenhuma outra lei ordinária federal impede que se ultime a usucapião quando possível a “correta escrituração das transações”.
Diante disso, se o possuidor, por exemplo, após a celebração de contrato particular de promessa de compra e venda, exercer a posse por dez anos, “contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé” e sem a ocorrência de alguma das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição aquisitiva, há de ser reconhecida a usucapião, mesmo que possível lavrar e depois registrar a escritura definitiva de compra e venda.
Não se pode olvidar também que o reconhecimento da usucapião por sentença (usucapião judicial) ou por ato do oficial de registro de imóveis (usucapião extrajudicial) tem “natureza meramente declaratória (e não constitutiva), pois apenas reconhece, com oponibilidade erga omnes, um direito já existente com a posse ad usucapionem, exalando, por isso mesmo, efeitos ex tunc”, isto é, o “registro da usucapião no cartório de imóveis serve não para constituir, mas para dar publicidade à aquisição originária (alertando terceiros), bem como para permitir o exercício do ius dispoendi (direito de dispor), além de regularizar o próprio registro cartorial” (STJ, T3, REsp 118360/SP, DJe 02/02/2011; RSTJ vol. 221, p.485).
Portanto, preenchidos, no mundo dos fatos, os requisitos de qualquer das formas de usucapião, consuma-se a aquisição originária da propriedade, transmudando-se o possuidor em proprietário.
Dessa forma, é teratológico impor ao possuidor com justo título que já adquiriu originariamente a propriedade por uma das formas de usucapião que proceda à “correta escrituração” do negócio imobiliário original, a fim de que lhe seja transferido (de forma derivada) o que já foi juridicamente adquirido (de forma originária).
Se o possuidor que preencheu os requisitos da usucapião é proprietário, independentemente do ato de reconhecimento (declaratório) judicial ou extrajudicial, não se pode exigir, como fez o CNJ, que o possuidor ignore a usucapião já consumada e submeta-se a escrituração do negócio original (compra e venda, p.e.), como se a busca do reconhecimento da usucapião fosse um “meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários”.
Verificadas a presença dos requisitos da usucapião e a ausência de qualquer das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição aquisitiva, não se pode cogitar de burla ao sistema notarial e registral, nem muito menos de evasão fiscal.
Especificamente quanto à “tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários”, impende esclarecer que a aquisição originária da propriedade imóvel é fato tributário atípico, e, sendo juridicamente impossível a transferência da propriedade para quem já é proprietário (o reconhecimento da usucapião tem natureza declaratória!), é absolutamente despropositada a hipótese de “burla” à “tributação”.
Ainda que não fosse declaratório o reconhecimento da usucapião, o contribuinte não é obrigado a optar pelo regime tributário mais oneroso. Ao contrário. No sistema jurídico brasileiro, o direito de propriedade é regra e o tributo é exceção. Assim, não seria legítimo impor ao possuidor a via da aquisição derivada da propriedade (escrituração e registro da compra e venda, p.e.) se também possível a via da aquisição originária, mediante o reconhecimento da usucapião.
Nesse cenário hipotético (em que o reconhecimento da usucapião seria constitutivo), a opção pela formalização da aquisição originária da propriedade consubstanciaria elisão fiscal (planejamento tributário lícito), sendo induvidosamente legítima a escolha pelo regime tributário menos oneroso.
Definitivamente, a regra veiculada pelo §2º do art. 13 do Provimento CNJ n. 65, de 14/12/2017 não tem fundamento legal e afronta o princípio da função social da propriedade, frustrando a via extrajudicial do reconhecimento da usucapião e, por consequência, a política de regularização fundiária rural e urbana.
Impõe-se, assim, a decretação de invalidade da aludida regra infralegal, afastando-se a ausência de “óbice à correta escrituração das transações” como condição para o reconhecimento extrajudicial da usucapião.