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Artigo - 26 de setembro de 2024

Reforma Tributária e ITCMD sobre distribuição desproporcional de lucros de empresas familiares

Não é novidade a discussão sobre os reflexos tributários e previdenciários da distribuição desproporcional de lucros. Há precedentes exigências de imposto de renda e de contribuições previdenciárias sobre as parcelas distribuídas aos sócios que excedam a respectiva participação no capital social. Agora, o Projeto de Lei Complementar n. 108/2024 (um dos projetos de regulamentação da Reforma Tributária) objetiva atrair a incidência do ITCMD (imposto sobre heranças e doações) sobre tal ato societário.

A rigor, de acordo com a redação do §5º do art. 160 do PLP 108/2024, seria considerada doação, para fins de incidência do ITCMD, apenas a distribuição desproporcional de dividendos para sócios caracterizados como “pessoas vinculadas” (cônjuges, companheiros ou parentes, consanguíneos ou afim, até o terceiro grau, ou ainda pessoa jurídica da qual as referidas pessoas físicas sejam sócias, administradoras ou diretoras). Não se cogitaria de doação quando os lucros da sociedade fossem distribuídos para “pessoas não-vinculadas”.

Embora essa pretendida regra esteja sendo anunciada como “norma específica anti-abuso” direcionada contra ilegítimos planejamentos patrimoniais e sucessórios, há potencial repercussão negativa para as denominadas “empresas familiares”, grande parte das organizações empresariais no Brasil (90% das empresas brasileiras têm perfil familiar, segundo dados do IBGE).

Assim, a tipificação da desproporcional distribuição de dividendos como doação restringiria o livre exercício da atividade econômica de significativa parcela das pessoas jurídicas, frustrando-se a livre estipulação das partes pactuantes, em confronto ao art. 1.007 do Código Civil, que assegura aos sócios de sociedades simples ou empresárias limitadas a fixação de regra de participação dos sócios nos lucros e nas perdas, de maneira desproporcional às quotas correspondentes. Afrontaria também a regra veiculada pelo §4º do art. 294 da Lei das SA, que autoriza, na hipótese de omissão do estatuto da companhia fechada que tiver receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00, que a assembleia geral estipule livremente a forma de distribuição dos dividendos.

Ainda em tramitação no Congresso Nacional o PLP 108/2024, deve ser rechaçada a pretensão de tributar, como doação, a distribuição desproporcional de lucros em empresas familiares, invocando-se ao legislador os mesmos fundamentos adotados pela Receita Federal (Solução de Consulta DISIT/SRRF06 n. 46, de 24/05/2010) e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) para legitimar o referido ato societário e, assim, afastar a incidência do imposto de renda e das contribuições previdenciárias sobre os aludidos valores pagos aos sócios.

Apurados os lucros com base em escrituração regular e pagos ou creditados por pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não haverá incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do sócio ou acionista beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior (art. 10 da Lei 9.249/1995), independentemente da forma de distribuição dos dividendos (proporcional ou não à correspondente participação societária).

Realizada a distribuição dos lucros de acordo com o contrato social e em observância da legislação societária, não haveria também incidência das contribuições à seguridade social, bastando que, conforme as normas previdenciárias, sejam discriminados a remuneração decorrente do trabalho do sócio daqueles valores que lhes são pagos ou creditados em proveniência do capital social.

Voltando ao PLP 108/2024, observa-se que a redação do dispositivo legal implicaria em presunção relativa de doação simulada pelo contribuinte, impondo-lhe o ônus da prova da “justificativa negocial” para a realizada distribuição desproporcional de lucros da sociedade entre “pessoas vinculadas”. A histórica controvérsia sobre o “propósito negocial” revela a litigiosidade potencial das questões relativas à “justificativa negocial” que se exigiria da empresa familiar para creditar, de forma não equitativa, os lucros aos seus sócios.

O aludido projeto de lei complementar não esmiuça quais seriam os critérios legítimos de distribuição desproporcional de dividendos, o que certamente ensejaria grave insegurança jurídica para as sociedades ao repartirem seus lucros de forma não proporcional às quotas ou ações dos sócios beneficiários. Além disso, em absoluto desprestigio das novas diretrizes para a relação entre Fisco e contribuintes, o §5º do art. 160 do PLP 108/2024 encerra presunção de má-fé ao enquadrar, ordinariamente, como doação simulada a distribuição desproporcional de lucros.

A pretexto de inibir planejamentos tributários ilegítimos, não pode o legislador infraconstitucional restringir a livre iniciativa, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. O Senado Federal deve rejeitar o §5º do art. 160 do PLP 108/2024 e, assim, impedir a ofensa ao livre exercício da atividade econômica e à livre organização das empresas familiares (inclusive a ampla liberdade de estipular a forma de distribuição dos lucros apurados), que ocupam espaço fundamental na geração de riqueza e na criação de empregos no Brasil.

Marcos Pires

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