Sigilo dos dados de geolocalização e prova de jornada em reclamações trabalhistas
Mesmo que essa funcionalidade não seja oferecida pelo aplicativo contratado pelo empregador, a geolocalização está presente nos smartphones modernos e muitas empresas têm pleiteado aos juízes que determinem à Apple e ao Google a entrega destes dados para comprovar a inexistência de horas extras em processos trabalhistas, sendo uma medida para alcançar a verdade real dos fatos.
O debate para se chegar à conclusão sobre ser devida ou não a quebra desse sigilo dos empregados gira em torno de configurar ou não um risco desmedido à privacidade e à intimidade dos usuários possivelmente atingidos em face do respeito e priorização da busca pela verdade real no processo do trabalho.
A referida medida já vinha sendo admitida para elucidação de crimes, sendo entendimento do Superior Tribunal de Justiça que é possível a quebra do sigilo desses dados, não configurando violação à privacidade, quando houver indícios do ilícito cometido, justificativa da utilidade da requisição e indicação do período ao qual se referem os registros.
Recentemente, os tribunais trabalhistas do país têm utilizado, por analogia, o entendimento já firmado pelo STJ, considerando como válidos os pedidos feitos por empresas reclamadas para que o registro de localização do aparelho celular de empregados seja utilizado como evidência em demandas judiciais, não representando violação à intimidade do empregado e podendo ser atendido antes mesmo da produção de outras provas.
Em muitos casos, quando o magistrado defere a expedição de ofício para que os dados de geolocalização do telefone móvel do empregado reclamante sejam quebrados e sirvam como prova de que o registro de ponto da empresa representa a realidade dos fatos, muitos empregados ajuízam mandados de segurança com o objetivo de evitar o acesso aos dados, alegando a invasão da privacidade.
No julgamento de um desses mandados de segurança no Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina (Processo nº: 0000955-41.2021.5.12.0000), a maioria do colegiado da Corte, acertadamente, ponderando que a legislação não estabelece hierarquia entre os tipos de prova, reconheceu que o pedido de prova digital reforça a busca efetiva da verdade real, favorecendo a rápida duração do processo.
Em seu voto, o desembargador-relator Gracio Petrone, entendeu que “se o novo meio probatório, digital, fornece dados mais consistentes e confiáveis do que a prova testemunhal, não há porque sua produção ser relegada a um segundo momento processual, devendo, de outro modo, preceder à prova oral”, argumentou o relator, afirmando que vê o pedido como “exercício de direito” das partes.
E deve ser esse o entendimento dos tribunais. Não se pode evitar a produção de uma prova tão objetiva e imparcial para comprovação de existência ou inexistência de horas extras fundamentado apenas em violação da privacidade do funcionário, especialmente por que foi dele o pedido de horas extras e as informações fornecidas dizem tão somente respeito às horas, dias e locais de registro de ponto.
A pesquisa requerida apenas aponta a localização do dispositivo telefônico, não incluindo conversas ou imagens de qualquer uma das partes ou de terceiros, não havendo que se questionar sobre a violação da privacidade do empregado.
Cabe observar, ainda que, nessa linha, a ideia de privacidade não existiria, pois, a própria pessoa titular do direito (no caso o Reclamante), teria revelado a informação que ela mesma teria que ter protegido (os seus horários de trabalho, por exemplo), não havendo mais privacidade ou caráter íntimo em relação àquela informação a ser resguardada. Assim, as empresas defendem que a coleta de provas apenas serviria para confirmar as informações e não representaria ofensa à privacidade.
Ademais, não se pode ignorar que há ampla liberdade ao magistrado na condução do processo, inclusive para determinar as diligências que entender necessárias. Observe-se que a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet prevê, no artigo 22, que é possível o juiz ordenar ao responsável o fornecimento de “registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet”.
As empresas têm utilizado como fundamento do pedido também a Lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, prevê a possibilidade de o tratamento de dados pessoais ser realizado para o exercício regular de direitos em processo judicial — inciso VI do artigo 7º da lei.
Assim, tem se firmado o entendimento de que, havendo garantias de adequação e necessidade no fornecimento dos dados, bem como limitação com uma indicação específica de período da concessão das informações pelos juízes, não há vedação legal expressa ao uso das informações.
Na Justiça, geralmente não é questionado o uso dos dados de localização como prova quando eles foram coletados diretamente pela empresa, com autorização dos funcionários, por meio dos aplicativos de registro de ponto.
Mas mesmo que não seja por meio dos aplicativos contratados pelo empregador, é devido o uso dessas informações. Cumpre sinalizar que há muitos anos já se entende que não há violação de privacidade quando postagens em redes sociais ou dados de imposto de renda das pessoas são usadas como provas nos processos trabalhistas. Pelas mesmas razões, os dados de geolocalização poderiam ser fornecidos como meio de prova nas reclamações trabalhistas.
A tendência de deferimento desses pedidos nos processos trabalhistas tem sido evidente nos últimos meses.
Essa tem sido uma estratégia relevante para a comprovação da inexistência de horas extras em virtude de ser comum haver impugnação dos registros de ponto apresentados pelas empresas e divergência no depoimento das testemunhas em audiência. Cumpre salientar que, a prova testemunhal é um meio frágil de prova, sendo comum que o depoimento delas corrobore com jornadas absurdas e inverossímeis, gerando enriquecimento ilícito dos empregados e prejuízo indevido ao empregador.
A apresentação desses dados de geolocalização importa em prova cabal, objetiva e imparcial do local exato do registro de ponto do empregado, não gerando enriquecimento ilícito ao empregado que pleiteia indevidamente pagamento de horas extras em juízo. Observe-se que a quebra do sigilo desses dados servirá para provar a tese do empregador ou do empregado, pelo que esses dados cumprem perfeitamente o dever de ser imparcial e objetivo, não havendo razão para a negativa de apresentação dessas provas nos autos.
Ainda assim, é evidente que, por ser um tema novo, os magistrados trabalhistas têm divergido de entendimento. Entretanto, é evidente que há uma tendência de que esse tipo de requerimento seja cada vez mais formulado na justiça do trabalho, sendo positivo e até esperado que as novas tecnologias sejam utilizadas como meio de prova nas reclamações trabalhistas.
Assim, é evidente que o uso das tecnologias na busca pela verdade real nos processos trabalhistas deve ser abraçado pelas partes e pelos magistrados como uma forma de evitar pagamentos indevidos pelo empregador, especialmente quando já se verifica que não há violação desproporcional ao dever de privacidade do empregado.
Não se pode permitir que o empregador seja condenado a pagar horas extras quando o empregado impugna infundadamente os cartões de ponto que ele regularmente apresentou e a própria parte se nega a fornecer provas objetivas e imparciais para o direito que ela mesmo alega.