Lei n. 14.151/21: quem deve arcar com a remuneração das gestantes afastadas?
O homeoffice já não é mais uma modalidade de trabalho excepcional desde o início da pandemia. Muitas empresas precisaram recorrer a ele para manter suas atividades diante de tantos lockdowns impostos pelos Estados e pelos Municípios desde fevereiro de 2020. Até mesmo a lei se utilizou desse artifício para proteger alguns empregados mais expostos à Covid-19.
Foi o que aconteceu com as empregadas gestantes com a edição da Lei n. 14.151/21. A referida norma determinou que, durante toda a emergência de saúde pública decorrente da Covid-19, a empregada gestante deve permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo da sua remuneração, devendo ficar à disposição do empregador para exercer atividades à distância.
Para as empregadas cujas atividades permitem a atividade à distância, bastaram alguns ajustes para que as empresas conseguissem cumprir a lei, mas, e para as atividades que somente podem ser desenvolvidas no estabelecimento do empregador? A norma trazida pela Lei n. 14.151/21 omitiu parte de extrema relevância: quem deve arcar com a remuneração das gestantes que desenvolvem atividade incompatível com o trabalho à distância por todo o período de afastamento?
A insegurança jurídica experimentada nesse atual contexto do país não tem precedentes. Muito debate há sobre o tema, há até projeto de lei tramitando, estabelecendo medidas sobre o trabalho de gestantes durante a pandemia e prevendo a volta presencial após a completa imunização, mas a discussão em torno desse tema está longe de terminar.
A saída para muitas empresas foi ajuizar ações declaratórias requerendo do Poder Judiciário que a essas empregadas fosse ampliado o salário-maternidade, considerando a necessidade de afastamento antecipado e extremamente longo promovido pela Lei n. 14.151/21. Ora, para cumprimento da referida Lei e diante da Pandemia que já dura quase dois anos, é incompatível que a concessão do referido benefício previdenciário se dê por apenas 120 dias e seja iniciado com o parto ou com até 28 dias antes dele, segundo interpretação literal e exclusiva do art. 71 da Lei n. 8.213/91.
O poder público alega que não é possível ampliar o salário-maternidade por ausência de previsão legal e que deve o empregador arcar com a remuneração dessas empregadas gestantes, ainda que afastadas dos seus trabalhos em virtude da maternidade, fundamentando superficialmente que deve o empregador assumir os riscos da sua atividade econômica.
Mas assumir os riscos da atividade econômica não significa “pagar o pato” todas as vezes em que houver mudança na legislação, desonerando o poder público de arcar com seu ônus de proteger a maternidade, especialmente a gestante, nos termos do quanto previsto no art. 201 da Constituição Federal.
Atribuir ao empregador a responsabilidade por arcar com as remunerações de empregadas gestantes, afastadas pelo comando da Lei n. 14.151/21, viola frontalmente o princípio da livre iniciativa, da preservação do desenvolvimento das atividades empresariais, bem como comprova o interesse do poder público de se desonerar absolutamente da sua responsabilidade constitucional de proteger a maternidade e a família.
Diante desta situação trágica da Pandemia, é inequívoco que o período de concessão do salário-maternidade precisará acompanhar a necessidade social, devendo tal benefício previdenciário abranger todo o período necessário à garantia do pleno exercício da maternidade, sem que haja oneração excessiva do empregador. No caso concreto, a concessão do salário-maternidade deve corresponder ao tempo integral de afastamento em decorrência da gestação durante a pandemia.
Cumpre observar que o Brasil é signatário da Convenção n. 103 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n. 10.088/2019, que determina que “em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega”. O poder público não pode se omitir e imputar integralmente ao empregador o ônus de prover os recursos necessários à manutenção da empregada gestante durante o seu afastamento, sobretudo no contexto decorrente da pandemia ocasionada pela Covid-19.
A CLT também prevê o afastamento da empregada gestante em condições insalubres quando não for possível a adaptação das suas atividades para ambiente seguro, determinando que o afastamento deve ser custeado pelo salário-maternidade, durante todo o período (art. 394-A, §3º CLT). Por que agora, em condições idênticas de impossibilidade de desenvolvimento de atividades laborais, a remuneração da empregada gestante não seria arcada pelo respectivo benefício previdenciário?
No mesmo sentido, a Receita Federal do Brasil já se manifestou mediante Solução de Consulta N. 4.017/2021:
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS. SALÁRIO-MATERNIDADE. ATIVIDADE INSALUBRE. GRAVIDEZ DE RISCO POR INSALUBRIDADE. COMPENSAÇÃO (DEDUÇÃO). POSSIBILIDADE. Segundo a previsão legal objeto do artigo 394-A, e § 3º, da CLT, ao contribuinte é permitido o direito à dedução integral do salário-maternidade, durante todo o período de afastamento, quando proveniente da impossibilidade de a gestante ou lactante afastada em face de atividades consideradas insalubres, e esta não possa exercer suas atividades em local salubre na empresa, restando caracterizada a hipótese como gravidez de risco. 2.2.4 LEI Nº 8.213/91. Responsabilidade pela proteção à maternidade. Imprescindível que não se perca de vista que, conforme diplomas legais que estão vigentes, a responsabilidade pela proteção à maternidade é do Estado. Tal proteção se dá mediante compensação das contribuições previdenciárias pagas pelo empregador que, por sua vez, promove o pagamento (ou repasse) do salário maternidade. Nesse sentido, observe-se os artigos 71 e 72, da Lei 8.213/91, o artigo 93 e 94 do Decreto 3.048/99. Vale frisar ainda que a Receita Federal do Brasil possui instrução normativa nesse mesmo sentido: dispondo que o salário maternidade será pago/adiantado pelo empregador e compensado/deduzido por este quando do pagamento das contribuições previdenciárias – Instrução Normativa Nº 971/2009.
Assim, evidente que não pode recair sobre o empregador o ônus da remuneração das empregadas gestantes impossibilitadas de desenvolver atividades à distância, afastadas em virtude da Pandemia.
Em que pese ainda não pacificado, alguns juízes, acertadamente, já vêm reconhecendo a necessidade de ampliação do salário maternidade a essas empregadas em razão de ser do poder público a responsabilidade por proteger a maternidade e a saúde da mulher.
Com esse entendimento, a 1ª Vara Federal de Corumbá/MS (processo n. 5000587-10.2021.4.03.6004) autorizou o afastamento e o pagamento de salário-maternidade a gestantes de uma empresa que atua na área de recreação e lazer e não há possibilidade de as empregadas desenvolverem as funções à distância. Ao conceder a tutela de urgência, o juiz federal determinou à empresa o pagamento do salário-maternidade, mediante compensação com os valores devidos a título de contribuição social sobre a folha de salários e demais rendimentos pagos.
Na ação declaratória que tramita sob o n. 5006449-07.2021.4.03.6183 na 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, a Magistrada reconheceu que: “é imperiosa a conclusão no sentido de que a pessoa jurídica autora deve pagar a remuneração prevista no contrato de trabalho em vigor, diretamente às suas empregadas gestantes, assumindo tais pagamentos, extraordinariamente, a natureza de salário-maternidade, cabendo ao réu – INSS – a responsabilidade final pelos pagamentos, por meio da compensação com as contribuições incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos. Ressalte-se, consoante o entendimento jurisprudencial supratranscrito, que, ao efetuar o pagamento do benefício, o empregador atua, tão somente, como facilitador da obrigação devida pelo INSS, a quem incumbe suportar o encargo previdenciário. Por tais fundamentos, e considerando que a Lei nº 14.151/2021 não estabeleceu a efetiva responsabilidade da empresa pelo pagamento dos salários no período do afastamento das empregadas gestantes, impossibilitadas de trabalhar à distância pela própria natureza das suas atividades, entendo que não é incompatível com o ordenamento jurídico vigente o pagamento do salário-maternidade, durante o período de afastamento, em razão do risco para a gravidez, ocasionado pela Pandemia de Covid-19.”
Assim, é evidente que, diante dos diplomas legais que estão vigentes, a responsabilidade pela proteção à maternidade é do poder público. Nos casos de afastamento da empregada gestante em virtude da Lei n. 14.151/21, portanto, deve haver ampliação do salário-maternidade e não pagamento de salários pelo empregador. O empregador deve apenas fazer o repasse do benefício à empregada e, posteriormente, compensar esses valores antecipados. Não pode recair sobre o empregador o ônus da remuneração destas empregadas durante a persistência da situação de pandemia.