Planos de saúde e cobertura para transtornos globais do desenvolvimento: normas da ANS e Jurisprudência
Discussões envolvendo planos de saúde não são novidade no Poder Judiciário. Até o fim do ano de 2024, segundo projeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), devem ser distribuídas 685 mil ações¹ envolvendo este tema.
A relação entre os beneficiários e as operadoras de planos de saúde, incluindo administradoras, é marcada por incessantes batalhas. Entre os temas mais frequentes estão os reajustes desproporcionais, cancelamentos imotivados e, especialmente, a negativa de cobertura.
Este último tema teve importante desdobramento com o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, com o julgamento do REsp n. 2.061.135 / SP, que representa a crescente proteção do ordenamento jurídico em relação aos transtornos globais do desenvolvimento.
O transtorno global do desenvolvimento é caracterizado por um conjunto de condições que geram dificuldades de comunicação e de comportamento, prejudicando a interação dos pacientes com outras pessoas e o enfrentamento de situações cotidianas².
As operadoras de planos de saúde sustentam, com frequência, a ausência de cobertura integral dos procedimentos necessários aos cuidados com os portadores dos transtornos globais do desenvolvimento ou, ainda, defendem a limitação do número de sessões.
Durante algum tempo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) debateu a questão da taxatividade do rol de cobertura da ANS. Essa discussão foi resolvida no julgamento do EREsp nº 1.886.929/SP, no qual se consolidou o entendimento de que o rol é taxativo, admitindo-se, contudo, a possibilidade de mitigação em situações específicas.
Para além da taxatividade (mitigada) e avançando no cuidado com os indivíduos diagnosticados com transtornos globais do desenvolvimento, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), publicou o Comunicado n. 92/2021, assim como, no ano seguinte, editou as Resoluções Normativas (RN) n. 539/2022 e 541/2022, alterando a RN n. 465/2021, da ANS.
Com estas normas a ANS definiu pela impossibilidade de limitação das sessões previstas nas Diretrizes de Utilização – DUT com psicólogo e/ou terapeuta ocupacional e sessão com fonoaudiólogo.
Destacando-se, ainda, que estão devidamente previstos no rol vigente de coberturas – e sem limitação de sessões -, com base na indicação do médico assistente, os atendimentos por fisioterapeutas, tais como reeducação e reabilitação no retardo do desenvolvimento psicomotor, reeducação e reabilitação neurológica e reeducação e reabilitação neuro-músculo-esquelética.
Já no que se refere às RN n. 539/2022 e 541/2022, da ANS, foi estabelecida a cobertura para tratamento dos transtornos globais do desenvolvimento, nos termos do art. 6º, §4º, da RN n. 465/2021, da ANS:
Art. 6º Os procedimentos e eventos listados nesta Resolução Normativa e em seus Anexos poderão ser executados por qualquer profissional de saúde habilitado para a sua realização, conforme legislação específica sobre as profissões de saúde e regulamentação de seus respectivos conselhos profissionais, respeitados os critérios de credenciamento, referenciamento, reembolso ou qualquer outro tipo de relação entre a operadora e prestadores de serviços de saúde.
§ 4º Para a cobertura dos procedimentos que envolvam o tratamento/manejo dos beneficiários portadores de transtornos globais do desenvolvimento, incluindo o transtorno do espectro autista, a operadora deverá oferecer atendimento por prestador apto a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para tratar a doença ou agravo do paciente.
É nesse ponto que se verifica a importância do julgamento do REsp n. 2.061.135 / SP, que sintetizou a evolução normativa em relação à cobertura dos tratamentos interdisciplinares necessários ao enfrentamento dos transtornos globais do desenvolvimento.
Duas principais conclusões podem ser extraídas do voto da Ministra Nancy Andrighi. Nas palavras da relatora:
1. as sessões com fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas são ilimitadas para todos os beneficiários, independentemente da doença que os acomete;
2. a operadora deverá garantir a realização do procedimento previsto no rol e indicado pelo profissional assistente, cabendo ao prestador apto a executá-lo a escolha da técnica, método, terapia, abordagem ou manejo empregado.
Assim, em consonância com o Parecer Técnico nº 39/GCITS/GGRAS/DIPRO/2022, verificada a cobertura do procedimento, caberá ao médico assistente a escolha pela técnica, método, terapia, abordagem ou manejo, em conformidade com a legislação específica sobre as profissões de saúde e a regulamentação de seus respectivos conselhos.
Ainda nas palavras da Ministra relatora, se a operadora tem a obrigação de cobrir consulta/avaliação com fisioterapeuta, deverá custear as sessões de fisioterapia indicadas pelo profissional assistente, independentemente da técnica, método, terapia, abordagem ou manejo que o fisioterapeuta venha a utilizar.
Diante das recentes alterações normativas e do entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, exemplificado no julgamento do REsp n. 2.061.135 / SP, o direito dos beneficiários diagnosticados com transtornos globais do desenvolvimento a receberem tratamentos multidisciplinares, sem limite de sessões, ganhou maior proteção. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ao publicar as RN n. 539/2022 e 541/2022, reforçou o compromisso com a ampliação do acesso a tratamentos essenciais para a promoção de uma vida digna e saudável.
Com isso, a margem para negativa dos planos de saúde se vê cada vez mais limitada pela obrigação de assegurar tratamentos completos e adequados, conforme prescrição do médico assistente, independentemente da técnica ou método empregado. Esse cenário aponta para um avanço na jurisprudência e na regulação, que caminham juntas para garantir aos beneficiários a proteção efetiva de seus direitos à saúde, ampliando o alcance das coberturas e assegurando tratamentos adequados e contínuos.
Assim, o desenvolvimento normativo e jurisprudencial reflete um movimento em prol da proteção da dignidade e da saúde dos portadores de transtornos globais, o que representa um avanço significativo no direito à saúde suplementar no Brasil.