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Artigo - 14 de maio de 2020

Do alcance da regra de imunidade tributária veiculada pelo art. 156, §2°, inciso I, da Constituição Federal, especialmente quanto às operações de incorporação imobiliária.

Antes de abordar especificamente a norma veiculada pelo art. 156, §2°, inciso I, da Carta Constitucional, impõe-se a exposição do conceito de imunidade e a definição dos seus efeitos jurídicos.

As regras de imunidade – como se infere do próprio título da seção em que estão inseridas no texto supremo – caracterizar-se-iam como “limitações constitucionais ao poder de tributar”, expressão doutrinária consagrada pelo direito positivo. Rigorosamente, porém, a norma imunizante não se consubstanciaria em limitação, e sim, delineamento negativo da competência tributária. O legislador constituinte não outorga o poder de instituir tributos e, sucessivamente, limita-o, vedando a instituição de exações sobre determinados eventos ou em relação a determinadas pessoas. A competência tributária é atribuída aos entes políticos nos moldes já definidos pela Constituição, ou seja, o poder de instituir tributos é delimitado, de uma só vez, positiva e negativamente através das normas constitucionais.

Trata-se, por conseguinte, de técnica jurídica utilizada pelo legislador constituinte a fim de prestigiar e promover objetivos constitucionalmente albergados pelo ordenamento normativo brasileiro, tais como, o princípio federativo, resguardado pela norma que veda às pessoas políticas a instituição de impostos sobre “patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros” (CF, art. 150, VI, a); o princípio da liberdade de crença e culto, ao negar-se poder para instituir impostos sobre “templos de qualquer culto” (CF, art. 150, VI, b); a democracia e o pluralismo político, os valores sociais do trabalho e a liberdade de associação, o direito à educação, e a solidariedade e a assistência social, acobertados todos pela regra que impede o exercício da competência impositiva sobre “patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei” (CF, art. 150, VI, c); e também o direito de expressão e a liberdade de imprensa, viabilizados mediante a ausência de poder para instituir impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.

Não se pode olvidar de que o móvel da norma imunizante é sempre a proteção de valores – positivamente contemplados pela ordem constitucional – sobre os quais, inclusive, fundamentam-se a República Federativa do Brasil e o Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º). Desse modo, o aplicador do direito deve sempre proceder “à interpretação teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar-lhes o potencial de efetividade, como garantia ou estímulo à concretização dos valores constitucionais que inspiram limitações ao poder de tributar” (STF, Pleno, RE 237.718-6/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J.: 06.09.2001).

Em relação à regra (de imunidade, por delimitar a competência tributária dos entes municipais) prevista pelo art. 156, §2°, inciso I, do Diploma Constitucional – através de que é vedada a instituição do imposto de transmissão inter vivos (ITIV) sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, e também sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica – observa-se a proteção dos valores constitucionalmente positivados que consagram o livre exercício de qualquer atividade econômica pelos particulares (CF, art. 170, parágrafo único) e a plena liberdade de associação para fins lícitos (CF, art. 5º, inciso XVII), direito fundamental que, conforme a doutrina constitucionalista, não se restringe às associações em sentido estrito, alcançando também as pessoas jurídicas com fins lucrativos, e tem como consectário o direito de livre organização, isto é, a ampla faculdade da pessoa jurídica de realizar operações societárias de fusão, incorporação, cisão e extinção, sem que lhe seja oposta qualquer interferência estatal, inclusive de natureza tributária.

Confirma-se, destarte, a compatibilidade da regra de imunidade veiculada pelo art. 156, §2°, inciso I, da Constituição Federal, com os vetores axiológicos albergados pelo texto constitucional que consagram o livre exercício de qualquer atividade econômica pelos particulares e a plena liberdade de associação para fins lícitos, consoante a exposição acima empreendida, diretrizes valorativas que não podem ser olvidadas em qualquer atividade hermenêutica do enunciado prescritivo ora examinado.

Nessa linha interpretativa é que se impõe a busca do significado da ressalva efetuada na parte final do mesmo dispositivo analisado, ao estatuir que não se aplica a regra de imunidade, quando, nos casos de transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, e também de transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, “a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”, sendo imprescindível, para o fim que se propõe este trabalho, perquirir se a atividade de incorporação imobiliária enquadra-se nas hipóteses normativas excepcionadoras da imunidade do ITIV.

Deveras, conforme a legislação específica que rege a matéria (Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964), “considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações, ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”, atividade que, por demais evidente, não consubstancia locação de bens imóveis, nem arrendamento mercantil, não se caracterizando também como simples compra e venda de bens imóveis, negócios jurídicos cuja disciplina é conferida por leis diversas.

Ressalte-se que a incorporação imobiliária não se confunde com a venda de unidade autônoma em edifício pronto; a primeira é atividade produtiva ou industrial e rege-se por lei específica, a segunda é atividade comercial ou especulativa, regulada pelo direito comum (Código Civil).

Demais disso, ao contrário da atividade de compra e venda de bens imóveis, a incorporação imobiliária é prestigiada pelo ordenamento jurídico constitucional que atribui aos entes políticos a incumbência de “promover programas de construção de moradias” (CF, art. 23, inciso IX), e que consagra a moradia como direito social (CF, art. 6º, caput, com a redação determinada pela EC 26/2000).

Por todas as razões expostas, não se pode admitir qualquer interpretação que afaste do âmbito de eficácia da regra de imunidade veiculada pelo art. 156, §2º, inciso I as aquisições de terrenos para realização de capital ou aquisições decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoas jurídicas incorporadoras imobiliárias, cuja atividade preponderante é, conforme a definição legal, “exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações, ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”.

Acrescente-se que não pode a lei, nem muito menos o intérprete, “alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias” (CTN, art. 110), sendo-lhes, portanto, absolutamente ilegítima a tentativa de alterar o conceito legal de incorporação imobiliária, confundindo-o com o simples negócio de compra e venda, o que ultrapassaria, destarte, os limites do poder tributário outorgado aos Municípios, expressamente delimitado pela imunidade prevista pelo art. 156, §2º, inciso I, da Carta Magna.

Conclui-se, enfim, pelas razões acima expendidas, que a norma imunizante veiculada pelo art. 156, §2º, inciso I, da Constituição Federal, há de ser interpretada à luz dos vetores axiológicos que a fundamentam, impondo-se averbar que as aquisições de bens imóveis em realização de capital ou decorrentes de operações societárias promovidas por pessoas jurídicas incorporadoras imobiliárias não se submetem à incidência das regras municipais relativas ao imposto sobre transmissões inter vivos – ITIV.

Marcos Pires

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