Imunidade tributária recíproca e imóvel público cedido a particular
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal modificou a sua jurisprudência quanto à imunidade tributária sobre imóvel público cedido a particular.
Até então prevalecia o entendimento de que a posse precária e desdobrada do particular sobre o imóvel público – decorrente de obrigação pessoal, sem ânimo de domínio – não caracterizaria fato gerador do IPTU e não afastaria a imunidade tributária recíproca.
A imunidade tributária recíproca é a regra constitucional que, em prestígio do pacto federativo, impede que a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.
Afastando-se a tributação de uns sobre os outros, a regra imunizante assegura a autonomia dos entes políticos, garantindo a regular consecução das competências executivas definidas constitucionalmente.
Importante destacar o delineamento negativo da imunidade tributária recíproca estabelecido pelo §3º do art. 150 da CF, ao afastar a vedação de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços “relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário”.
Deve-se averiguar, portanto, a natureza da atividade estatal a fim de definir se os correspondentes bens, serviços e rendas vinculam-se à prestação de serviços públicos ou à exploração de atividades econômicas em sentido estrito.
A atuação estatal no domínio econômico não goza da imunidade recíproca em virtude da regra limitativa expressa veiculada pelo §3º do art. 150 da CF, em absoluta consonância ao art. 173 da Constituição, que submete as pessoas jurídicas de direito público – quando explorarem atividades econômicas, diretamente ou por intermédio de empresas públicas ou sociedades de economia mista – ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações tributárias.
Por outro lado, não há limitação da imunidade tributária recíproca quando o ente federativo presta serviços públicos.
Na evolução jurisprudencial a partir do julgamento do RE 253.472/SP, o STF passou a reconhecer a imunidade tributária tão somente para as empresas públicas e sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos, que não distribuem lucros para particulares e que executam as suas atividades em regime de monopólio.
Obstaculiza-se, destarte, a instituição de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços vinculados à prestação de serviços públicos, realizada diretamente pelos entes políticos ou por meio de empresas estatais que não distribuam lucros para particulares e que atuem em regime de monopólio.
Não gozam da imunidade tributária recíproca, porém, o patrimônio, a renda e os serviços relacionados à exploração de atividades econômicas em sentido estrito, seja tal atuação promovida diretamente pelos entes estatais, seja realizada por particulares (inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista), assim como também não são afastados da esfera de incidência impositiva o patrimônio, a renda e os serviços de empresas estatais que, embora delegatárias de serviços públicos, distribuam resultados para particulares e exerçam as suas atividades em regime concorrencial.
Essa distinção, entretanto, não é suficiente para aplicar, de forma correta, a regra de imunidade tributária recíproca em todos os casos.
A regra veiculada pelo §3º do art. 150 da Constituição Federal, como já afirmado, é explícita ao afastar a vedação de cobrança de impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços “relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário” tanto quando empreendida diretamente pelos entes estatais como quando executada por intermédio de empresas estatais.
Também por força da aludida regra limitadora, não se estende a imunidade tributária recíproca quando o bem público é cedido a pessoa privada para realização de empresa particular.
Neste ponto, irretocável é a conclusão do acórdão do RE 601.720/RJ, que rechaçou a imunidade tributária sobre bem da União cedido a pessoa privada (concessionária de veículos), que exerce atividades empresariais com fins lucrativos e sob regime de concorrência, absolutamente desvinculadas do interesse público.
A destinação do imóvel público para fins privados autoriza a cobrança de IPTU, inclusive contra o próprio ente político e não apenas contra o particular possuidor.
Não há dúvida também quanto à vedação de cobrança de IPTU sobre imóvel público utilizado diretamente pelo ente federativo ou por empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos em regime de monopólio e que não distribuam lucros para particulares.
Há situações, porém, em que o imóvel público é cedido para empresas estatais com significativa participação societária de particulares ou para empresas exclusivamente privadas (concessionárias ou permissionárias) em virtude da delegação de serviços públicos.
É certo que as concessionárias e permissionárias de serviços públicos (inclusive empresas estatais que atuem em regime concorrencial e que distribuam dividendos) não são beneficiárias da imunidade tributária recíproca, estando todo o seu patrimônio, as suas atividades e as suas rendas submetidos à tributação.
A induvidosa submissão aos impostos das delegatárias de serviços públicos (empresas privadas e estatais que distribuem lucros e que não atuam em regime de monopólio) não implica automaticamente no afastamento da imunidade tributária recíproca em relação ao imóvel público cedido.
É essa questão específica que passou despercebida pelo STF nos julgamentos que alteraram a jurisprudência acerca da incidência de IPTU sobre imóvel público cedido a particular.
Para a elucidação da matéria, é indispensável verificar a delimitação constitucional da competência dos municípios para a instituição do IPTU.
De pronto, revela-se que o aspecto material do referido imposto municipal é a “propriedade predial e territorial urbana”. A manifestação de riqueza que legitima a imposição é a conduta de ser proprietário, isto é, de ser dono do imóvel, de integrar o imóvel o seu patrimônio.
Sujeito passivo direto do IPTU é aquela pessoa vinculada à propriedade do imóvel (não necessariamente o proprietário) e sob essa perspectiva deve ser interpretado o art. 34 do CTN.
A destinação do imóvel público a finalidades particulares afasta a imunidade recíproca, mas não desloca a sujeição passiva direta para o possuidor. O ente político proprietário do imóvel cedido a particular permanece como contribuinte do IPTU, legitimando-se, inclusive, a cobrança direta do IPTU perante a pessoa jurídica de direito público.
A despeito da possibilidade de cobrança direta do IPTU contra o ente político proprietário, a legislação municipal, com fundamento no art. 128 do CTN, pode atribuir ao possuidor do imóvel público (utilizado para a exploração de atividades econômicas em sentido estrito) a responsabilidade pelo imposto, “excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação”.
Essa diferenciação entre contribuinte e responsável tributário é relevantíssima tendo em conta que é a capacidade econômica do contribuinte – e não do responsável – que justifica o imposto.
A capacidade contributiva da pessoa que explora atividades econômicas submete o seu patrimônio, a sua renda e os seus serviços à tributação; mas não é essa capacidade contributiva que atrai a incidência do IPTU sobre o imóvel público.
Enquanto objeto de posse precária, o imóvel público não integra o patrimônio do particular; não é signo de riqueza do possuidor. Na cessão de uso, o particular tem apenas a posse precária e desdobrada do bem. A posse do particular não pode ser cedida para terceiros; não há disponibilidade do direito de posse do bem público.
Para a cobrança de IPTU do particular que utiliza imóvel público para a exploração de atividades econômicas em sentido estrito não é necessário o malabarismo hermenêutico de admitir a incidência do imposto sobre posse desvinculada da propriedade.
Há de se atentar, porém, para as situações em que o imóvel do ente político é cedido para delegatária de serviço público (empresa privada ou empresa estatal que atue em regime concorrencial).
Embora a delegatária de serviços públicos se submeta ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações tributárias, não se beneficiando, definitivamente, da imunidade recíproca, tal circunstância não tem o condão de legitimar a cobrança de IPTU sobre imóvel cuja utilização continua destinada ao interesse público.
Fundamental para elucidar essa questão é distinguir as espécies de bens públicos, conforme discriminação adotada pelo Código Civil.
O traço distintivo entre “bem público de uso especial” e “bem público dominical” é a afetação ao interesse público.
Os imóveis cedidos a particulares para a exploração de atividades econômicas em sentido estrito são desafetados da função pública e, assim, caracterizam-se como bens públicos dominicais, sujeitando-se à tributação do IPTU.
Os imóveis cedidos para delegatária de serviço público – ainda que se trate de empresa privada ou de empresa estatal que atue em regime concorrencial – permanecem afetados ao interesse público, servindo como instrumento da competência constitucional executiva dos entes políticos, e preservando, por conseguinte, a sua natureza de bem público de uso especial.
Ainda que delegada a sua execução para empresa privada ou estatal, o serviço público mantém a sua natureza, submetendo-se à regulação e à fiscalização pelo poder concedente.
Quando a União delega as suas competências executivas arroladas pelo art. 21 da Constituição (por exemplo: serviço postal e correio aéreo nacional; navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária; serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros; portos marítimos, fluviais e lacustres), não se desnaturam as atividades delegadas, sempre consubstanciadas como “serviços públicos” e, dessarte, submetidas à ampla disciplina regulatória pelo poder concedente.
Os imóveis dos entes políticos cedidos para o particular e destinados à execução dos serviços públicos continuam afetados ao interesse público e, consequentemente, permanecem caracterizados como bens públicos de uso especial.
Servindo como instrumentos da realização de serviços públicos, os imóveis cedidos a delegatários vinculam-se induvidosamente às finalidades essenciais do ente político a quem a Constituição Federal outorgou competência para a execução de tais atividades, diretamente ou por meio de concessões ou permissões.
A submissão da delegatária ao regime jurídico próprio das empresas privadas não interfere na imunidade tributária recíproca que afasta os impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
A despeito da transmissão da posse ao particular, o imóvel público utilizado para a prestação de serviços públicos continua integrando o patrimônio do ente federativo e, considerando o vínculo intrínseco do imóvel com as competências constitucionais do proprietário (ente político), nada justifica a restrição da imunidade tributária recíproca.
A bem da verdade, a exigência de imposto sobre bem público de uso especial (afetado a serviço público cuja execução é atribuída constitucionalmente ao ente político proprietário, diretamente ou por meio de delegação) compromete o regular exercício da respectiva competência executiva, violando, decerto, o princípio federativo (fundamento primeiro da imunidade tributária recíproca).
A cessão de uso do imóvel público, na maioria das vezes, é indispensável para a prestação dos serviços delegados e assegura também a modicidade tarifária, vetor normativo consagrado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, quando mantida a propriedade pelo ente estatal e preservada a afetação do imóvel ao interesse público, deve ser aplicada a regra de imunidade tributária recíproca, afastando-se a incidência do IPTU, ainda que a posse (precária e desdobrada) seja transferida para delegatárias de serviços públicos não beneficiárias do aludido privilégio fiscal.