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Artigo - 22 de janeiro de 2024

Marco Legal das Garantias autoriza a busca e apreensão extrajudicial de veículos nas hipóteses de inadimplemento de contratos garantidos por alienação fiduciária

Em 14/12/2023, o Congresso Nacional rejeitou os vetos presidenciais a dispositivos da Lei Federal 14.711/2023, conhecida como “Marco Legal das Garantias”, e instituiu um modelo de busca e apreensão extrajudicial de veículos e demais bens móveis nas hipóteses em que houver o inadimplemento das prestações oriundas de um contrato garantido por alienação fiduciária.

O procedimento tem por escopo facilitar a recuperação de veículos gravados com alienação fiduciária, a fim de trazer maior segurança e estabilidade aos agentes envolvidos em tal segmento econômico. Afasta-se a obrigatoriedade de submissão do credor aos entraves e morosidade inerentes à estrutura do Poder Judiciário, o que, em última análise, poderá contribuir para a diminuição de riscos, taxas de juros e custos atrelados ao mercado de financiamento automotivo, além de criar um ambiente mais atrativos aos investimentos.

Trata-se de inovação legislativa inserida no contexto de ampliação da autonomia privada vivenciado pelo ordenamento brasileiro, na exata linha da Lei da Liberdade Econômica e de outras proposituras legislativas ainda em tramitação, como  PL 6.204/2019 que pretende introduzir, no Brasil, um modelo de execução extrajudicial das obrigações de pagar quantia certa.

Em termos gerais, a alienação fiduciária pode ser descrita como uma modalidade de garantia que incide sobre bens do devedor e, com relação aos veículos automotivos (carros, motocicletas, caminhões), está disciplinada no Decreto-Lei 911/1969.

Nesta espécie de garantia, o devedor transfere a propriedade do veículo para uma instituição financeira, mediante registro do contrato na repartição competente para o licenciamento, seguido de anotação no certificado de registro (CRLV). Durante o pagamento da dívida, o devedor permanecerá na posse do veículo, porém a propriedade estará sob a titularidade da instituição financeira, de modo que, após a quitação integral, a propriedade retornará ao devedor.

O Decreto-Lei 911/1969 prevê um procedimento extrajudicial específico para cobrança de dívidas oriundas dos contratos garantidos por alienação fiduciária. Tal execução é conduzida perante o oficial do Registro de Títulos e Documentos.

Até então, caberia exclusivamente ao Poder Judiciário a tarefa de efetuar a busca e apreensão do bem dado em garantia caso não fosse entregue pelo devedor após o exaurimento do prazo fixado para purgação da mora.

A Lei 14.711/2023 trouxe a possibilidade da busca e apreensão do veículo ser realizada no próprio Registro de Títulos e Documentos, afastando a obrigatoriedade de intervenção do Poder Judiciário para reaver o bem objeto da garantia. O processo judicial será facultativo (§ 11 do Art. 8º).

De acordo com o Art. 8º-C, §1º, do referido diploma legal, exaurido o prazo para purgação da mora e após a consolidação da propriedade, a instituição financeira poderá requerer a realização da busca e apreensão do veículo diretamente ao oficial do registro de títulos e documentos, facultando-se, ainda, a deflagração do procedimento perante os órgãos executivos de trânsito dos Estados (Art. 8º-E).

O §2º do Art. 8º-C outorga ampla competência para adoção de medidas destinadas a localizar e facilitar a apreensão do veículo que, simultaneamente, constituirão mecanismos para coagir o devedor a entregá-lo voluntariamente.

Por exemplo, autoriza-se:

  • Lançar restrição de circulação e de transferência do veículo no RENAVAM;
  • Expedir comunicação aos órgãos registrais ou de trânsito competentes para averbação da indisponibilidade do bem e da busca e apreensão extrajudicial;
  • Expedir certidão de busca e apreensão do bem.

Outro ponto relevante diz respeito à possibilidade da instituição financeira, por conta própria ou por meio de empresas especializadas, realizar diligências no sentido de localizar o bem (§§ 4º e 5º do Art. 8º-C). A atividade dessas empresas deverá ser regulada pelo Poder Executivo, a quem competirá definir requisitos mínimos para o funcionamento (§ 6º do Art. 8º-C), o que abrirá a possibilidade de expansão de um mercado pouco explorado.

A principal vantagem do procedimento de busca e apreensão extrajudicial, sem dúvidas, será a celeridade na adoção e efetivação dessas medidas. Isso porque, a demora no proferimento das decisões judiciais e na efetivação delas pelas serventias judiciais e oficiais de justiça são elementos que dificultam e, até mesmo, obstam a apreensão de veículos.

Considerando a notória celeridade das serventias extrajudiciais frente ao Poder Judiciário, é certo que tal fator poderá resultar na maior probabilidade de êxito na recuperação do veículo em razão da adoção de medidas restritivas de forma mais célere, devendo, a todo tempo, ser observado o contraditório e a ampla defesa.

É natural que se questione a constitucionalidade desse procedimento, entretanto não se vislumbra violação ao princípio da inafastabilidade do Poder Jurisdicional, que poderá ser provocado a qualquer tempo e por qualquer uma das partes (devedor/credor) para controlar a legalidade dos atos praticados no âmbito extrajudicial.

Também não se vislumbra violação ao monopólio estatal do uso da força, pois os dispositivos da Lei 14.711/2023 não outorgaram a possibilidade da própria apreensão ser realizada pelo oficial, credor ou terceiro. Não raras vezes, se faz necessário o manejo da força física contra o devedor não hipóteses em que houver recusa na entrega do veículo, o que, via de regra, não poderá ser realizado por um privado.

A tendência doutrinária moderna¹ é no sentido de admitir que o monopólio do uso da força pelo Estado se restringe às hipóteses de utilização da força física, de sorte que um privado poderá determinar e praticar medidas coercitivas contra outrem mediante autorização legal específica. Será imprescindível, entretanto, a provocação do Poder Judiciário que se fizer necessária a utilização da força física, o que, por exemplo, ocorrerá nas situações em que houver o desapossamento de um bem móvel.

À luz da disciplina da Lei 14.711/2023, caberá ao oficial adotar as medidas necessárias à facilitação da apreensão do veículo pelas autoridades estatais, que poderão utilizar a força física para reaver o bem e devolvê-lo ao credor. De igual modo, a atuação do credor e das empresas especializadas será no sentido de localizar o veículo e comunicar às autoridades estatais, a fim de que procedam com a apreensão.

Assim sendo, os atos materiais de apreensão permanecerão sob a competência das polícias e autoridades de trânsito, que são agentes integrantes da estrutura estatal e, enquanto titulares do uso da força, poderão adotar as medidas que se fizerem necessárias ao desapossamento.

Competirá ao Conselho Nacional de Justiça e às corregedorias dos Tribunais supervisionar a atuação dos delegatários que conduzirão este novo procedimento, a fim de analisar os resultados e realizar os ajustes que se fizerem necessários.

1 Ver mais em: BARBI, Marcelo. Arbitrabilidade cautelar e monopólio estatal da coerção: revisitando a titularidade do ius imperium no estado Contemporâneo. In: CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; GRECO, Leonardo; DALLA, Humberto (Org.). Temas controvertidos na arbitragem à luz do Código de Processo Civil de 2015. vol. 1. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2018. pp. 196 – 197. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Tendências evolutivas da execução civil brasileira. In: SICA, Heiro Vitor Mendonça; BONATO, Giovanni; CINTRA, Lia Carolina Batista. Colóquio Brasil – Itália de direito processual civil.
p. 293 – 315. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 299.

Rafael Andrade

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