O “sócio laranja” e a responsabilidade pelas dívidas tributárias da empresa encerrada irregularmente
A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em recentíssimo julgamento submetido à sistemática dos recursos repetitivos (REsp 1377019, REsp 1776138 e REsp 1787156), com efeitos vinculantes para os tribunais de todo o país, definiu que o sócio responsável pelas dívidas tributárias da pessoa jurídica que encerrou irregularmente suas atividades é aquele que integrava seu quadro societário quando ocorrida a dissolução irregular, e não aquele que integrava a sociedade à época do fato gerador da obrigação tributária.
Desde 2016 se aguardava a definição definitiva do STJ sobre a discussão. Milhares de processos judiciais que estão suspensos nas instâncias inferiores poderão, agora, ser julgados de acordo com a orientação vinculante da Corte.
Há dois pontos desse julgamento que merecem algumas reflexões.
Vigente desde o ano de 2010, a Súmula n. 430 do próprio Superior Tribunal de Justiça dispõe que o inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente. Tal verbete sumular foi um dos fundamentos utilizados pela 1ª Seção do STJ para considerar que os sócios que se retiraram da empresa antes de ela encerrar suas atividades não podem ser cobrados pelos débitos da pessoa jurídica.
A rigor, diante da existência da Súmula, tal conclusão é tão óbvia que o STJ sequer deveria ser provocado para decidir sobre essa questão. Responsabilizar pessoalmente um sócio que já se retirou da empresa, exclusivamente porque a pessoa jurídica não adimpliu suas dívidas, vai de encontro com a orientação jurisprudencial pacífica daquele tribunal.
A questão é que, a despeito da claríssima redação sumular, os tribunais inferiores tendem a simplesmente ignorá-la.
As Fazendas Públicas comumente incluem os sócios e administradores como corresponsáveis pelos débitos da pessoa jurídica nas certidões de dívida ativa que subsidiam as execuções fiscais. Uma vez ajuizada a execução fiscal, apenas em razão da não localização de numerário ou bens suficientes da pessoa jurídica para adimplir o débito, é deveras comum a imediata citação dos corresponsáveis indicados na CDA para quitar o débito executado, em absoluto desprezo à Súmula n. 430.
O segundo e o mais relevante ponto do julgado é, em verdade, o próprio cerne da discussão do caso examinado pelo STJ: a responsabilidade pessoal do (ex) sócio pelos débitos da empresa que foi dissolvida irregularmente.
Se o mero inadimplemento de tributos pela sociedade não é causa para a responsabilização do sócio, o encerramento irregular da pessoa jurídica pode ser considerado ato ilícito capaz de atrair a responsabilidade do sócio e/ou administrador pelos débitos se demonstrada a intenção de cometer fraude ou abuso da personalidade jurídica.
Por esse motivo, a caracterização do momento da dissolução irregular, senão a principal, é uma das questões mais relevantes da recente orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça. Os sócios que integravam o quadro societário da pessoa jurídica e dela se retiraram antes da dissolução irregular não podem ser responsabilizados pelos débitos tributários da empresa.
Ainda que os débitos se refiram a fatos geradores ocorridos no período em que participavam da empresa, se à época não havia qualquer causa de dissolução irregular, a ausência de responsabilidade se mantém, pois o mero inadimplemento de tributos não acarreta a responsabilização pessoal dos sócios.
Se o momento da dissolução irregular é que dirá qual sócio é responsável solidário pelos débitos fiscais da pessoa jurídica, há de se alertar que a retirada de sócio do quadro societário com a inclusão de interposta pessoa (popularmente chamado de “laranja”) é ato ilícito que caracteriza a dissolução irregular da empresa[1]. Mais que isso: tal prática atrairia para o antigo sócio não apenas a responsabilidade tributária, como também a responsabilidade criminal.
Espera-se que agora, diante do relevante julgamento do STJ, os tribunais inferiores, de uma vez por todas, orientem suas decisões conforme o verbete sumular n. 430, enterrando definitivamente a arcaica confusão entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios e administradores. Somente se e quando caracterizada a dissolução irregular da empresa, a cobrança dos débitos da pessoa jurídica poderá ser direcionada aos sócios que integravam a empresa no momento do ato ilícito.
[1] APELAÇÃO CÍVEL – EXECUÇÃO FISCAL – AÇÃO ANULATÓRIA – DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE DEVEDORA – REDIRECIONAMENTO PARA SÓCIO ADMINISTRADOR – INTERPOSTA PESSOA – ILEGITIMIDADE PASSIVA. 1. Diante da presunção de legitimidade da Certidão de Dívida Ativa, quando o nome de sócios ou acionistas da pessoa jurídica executada nela figurarem como coobrigados, presume-se ocorrida uma das hipóteses de redirecionamento autorizadas no art. 135 do CTN. 2. Nos termos da Súmula nº. 435 do Superior Tribunal de Justiça, “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”. 3. A interposta pessoa (vulgarmente conhecida como “laranja” ou “testa de ferro”) que figura formalmente como sócia administradora da sociedade devedora, mas jamais exerceu qualquer ato de gerência, não é parte legítima para figurar no polo passivo da execução fiscal. (TJ-MG – AC: 10000191647551001, Relator: Wagner Wilson, Data de Julgamento: 20/08/2020, Data de Publicação: 26/08/2020)